ASSIM É O MARAJÓ REAL

20/01/2014 22:50

Assim é o Marajó real

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MARY COHEN – ADVOGADA E DEFENSORA DE DIREITOS HUMANOS/PÁ

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A Ilha do Marajó localiza-se na foz do Rio Amazonas e é o maior arquipélago fluvio-marítimo do mundo. Com quase 50 mil quilômetros quadrados, abriga 12 municípios e é maior quevários países europeus.

Segundo a propaganda oficial do governo do Estado do Pará, o Marajó é um dos mais importantes santuários ecológicos do planeta e um polo turístico de alternativas inesgotáveis. A exuberância da paisagem é formada por florestas, campinas, gramados, praias de rio, lagos de todos os tamanhos, furos e igarapés. Pássaros raros, a exemplo do guará, jacarés, peixes e muitos outros animais compõem a fauna marajoara, formando um espetáculo de sons e cores imperdíveis. A principal atividade econômica do Marajó é a criação de búfalos, mas o artesanato também merece destaque. A preocupação com a preservação da cultura marajoara é flagrante na reprodução de peças de excepcional beleza. A culinária também é um ponto forte, especialmente por causa da variedade de peixes deliciosos. Quando se vem ao Pará, é impossível resistir a um passeio pelo Arquipélago do Marajó.

Esse aí é o Marajó oficial, agora passemos ao Marajó real.

Melgaço, um dos municípios do Arquipélago, ficou conhecido recentemente por ser o município com menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) municipal do país. Em uma escala que vai de 0 a 1, a nota obtida pela cidade foi 0,418, o que faz com que ela figure na faixa de áreas com pouquíssimo desenvolvimento humano. A cidade, onde ainda é comum moradores viverem em palafitas, convive com problemas em todas as áreas e enfrenta uma realidade em que falta quase tudo: saneamento, educação, saúde de qualidade e até carros.

O município com pior qualidade de vida do país não está sozinho com essa triste realidade. Os outros 11 municípios do Marajó também não conseguem esconder sua pobreza. É comum, na área rural, as casas sobre palafitas, sem qualquer saneamento ou energia elétrica, sendo que o banheiro dos moradores é o próprio rio.

Mais de 50% da população do Marajó vive com renda per capita inferior a meio salário mínimo e onde a pobreza impera, reina a violência, a exploração sexual de crianças e adolescentes, o tráfico de drogas e de pessoas, além de políticos poucos comprometidos com os anseios da população.

Após denunciar máfias do tráfico de seres humanos e as redes de abuso sexual de menores no Marajó, o bispo da ilha, Dom José Luis Azcona, foi o responsável pela abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia em 2008, que investigou as rotas do tráfico e as redes de exploração sexual na região.

Dom José disse que tomou conhecimento de um dos primeiros casos concretos de tráfico em novembro de 2007, quando uma adolescente de 16 anos, da cidade de Portel (PA), foi presa pela Polícia Federal (PF) no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP), antes de embarcar para Madri, na Espanha. Na ocasião ela relatou à PF que dias depois um grupo de meninas seguiria o mesmo destino. A rota identificada saía de Portel, seguia por Breves (PA), Belém (PA), Guarulhos e daí para o exterior. Breves e Portel são municípios do Marajó. Por causa das denúncias, Dom José foi ameaçado de morte.

A exploração sexual é uma das principais atividades e vias de acesso para o tráfico de seres humanos. As cidades de Portel, Curralino, Melgaço, Breves e Ilha de Marajó, além de Belém, todas no Pará, Oiapoque no Amapá e países como Guiana Francesa e Suriname, se destacam como rotas de intensa atividade desses crimes na região.

Nos municípios do Marajó é comum encontrar crianças e adolescentes circulando entre as embarcações. Os barcos são locais onde acontecem abuso e exploração sexual em troca de óleo ou restos de comida, e também são meios de transporte das vítimas do tráfico de pessoas.

A ilha do Marajó, por estar em região fronteiriça e próxima da Guiana Francesa, apresenta uma situação de fragilização social. “Marajó está se convertendo num lugar de perversão, de criminalidade, precisamente pela ausência do Estado. O Brasil tem que olhar para toda essa Região da desembocadura do Amazonas”, disse Dom José.

Por conta dessa situação, a Comissão Justiça e Paz (CJP), da CNBB Norte2, está cobrando, dos poderes públicos, medidas urgentes e efetivas, vez que o Marajó está abandonado pelas autoridades e a impunidade impera no local.

Na denúncia apresentada pela CJP, consta que o rio Tajapuru, em Melgaço e Breves, coalhado de balsas e outros barcos, é cenário corriqueiro de meninas e meninos, tristemente conhecidos como “balseiros”, que atracam canoas nas balsas. Ainda crianças, saem da sala de aula e abandonam os livros para fazer programas com os marinheiros. Têm sua infância roubada pela miséria em que vivem, no abandono secular da região.

Essa realidade brutal vem sendo denunciada há uma década, mas, mesmo após duas CPIs da Pedofilia e a CPI do Tráfico de Pessoas, permanece inalterada. A ausência do poder público é realçada pela inexistência de representantes locais da Defensoria Pública, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Não à toa, Melgaço detém o pior IDH nacional, Curralinho o menor PIB per capita do Brasil e Bagre o segundo pior índice.

Para agravar a situação, quem denuncia não é bem-vindo e sofre todo tipo de retaliação. É preciso ajudar a população a superar o medo, a vergonha e a tentação de permanecer omissa diante do abuso e da exploração de crianças e adolescentes, inclusive muitos pelos próprios pais e parentes.

A situação da segurança pública no Marajó é uma tragédia à parte. Não existe o número suficiente de policiais na maioria dos municípios, e onde eles estão são muitas as denúncias de corrupção, prática de tortura e envolvimento com o tráfico de drogas, que grassa na região, a mais pobre do Pará.

O promotor de Justiça do Pará, Armando Brasil, acionou a Corregedoria da PM e solicitou a remoção do efetivo que está no município de Anajás, inclusive em cumprimento às normas da Corporação de necessário revezamento, mas nada mudou. A Comissão Justiça e Paz oficiou a Secretaria de Segurança Pública do Pará incontáveis vezes e, recentemente, esteve com o Secretário de Segurança, mas nenhuma medida prática foi tomada. O discurso de paz social do governador Simão Jatene, desgraçadamente, não foi internalizado em seu secretariado ou,  quem sabe, não foi pra valer.

Os direitos humanos permanecem desconhecidos na vastidão do arquipélago. E em pleno século XXI, uma jovem mãe, Graciane Freitas da Silva, 21 anos, ensino fundamental incompleto, pobre e negra, foi presa, jogada em uma cela na companhia de vários homens, ofendida moralmente, obrigada a amamentar seu bebê de apenas onze meses na cela fétida – e somente duas vezes ao dia -, sem o mínimo de higiene, durante três dias, em Chaves (PA). De acordo com o presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado do Pará, o juiz da comarca, Leonel Figueiredo Cavalcante, expediu a ordem judicial para a prisão; o delegado Edgar Henrique da Cunha Monteiro a executou; e o promotor de justiça local, conforme matéria do site G1.com, negou os fatos, mesmo sendo públicos e notórios.

Em ata oficial de reunião, o próprio presidente do Conselho de Segurança do Estado do Pará e Secretário de Segurança Pública, delegado Luiz Fernandes Rocha, admitiu que “o grande problema é o cidadão não confiar nos órgãos públicos, e no município de Chaves a comunidade não está confiando nem na PM, TJ e Defensoria.”.

Os fatos são muito graves. A tal ponto que tanto o secretário de segurança quanto o delegado geral Rilmar Firmino assumiram o compromisso de que o delegado de polícia não retornaria a Chaves/Afuá – e isso ficou registrado em ata do CONSEP –, mas ele não só está no município como assedia a sua vítima.

Contra o delegado Edgar Henrique da Cunha Monteiro do município de Chaves, pesam acusações sombrias, apoiadas em alentado dossiê com vários documentos, entre eles depoimentos de presos submetidos a torturas física e psicológica, encaminhados pelos promotores de Justiça Franklin Jones Vieira da Silva e Samile Simões Alcolumbre de Brito e pelo defensor público Hélio Paulo Santos Furtado, onde pontifica inclusive despacho do juiz AcrísioTajra de Figueiredo, concedendo habeas corpus a menor custodiado em cela, em desobediência a todas as normas previstas no ECA, no qual reconhece abuso da autoridade policial e determina exame de corpo de delito e encaminhamento de cópias do procedimento e da decisão à Corregedoria da Polícia Civil, à promotoria de justiça da Comarca de Afuá e ao Conselho Tutelar do Município para providências (que nunca foram tomadas!).

Esse sim é o Marajó real, muito diferente daquele que consta nos panfletos do governo do Estado e nos sítios de turismo, que clama urgentemente por medidas efetivas que mudem essa realidade e quem sabe a transformação do arquipélago em território federal seja a solução. Pensar não dói, pelo menos não tanto quanto para a população que vive no Marajó.